Depois de me ter convencido tanto quanto era possível estar convencido de que a Donna me tinha deixado para sempre, afoguei as minhas mágoas escrevendo a peça de finalistas. Sempre afoguei as minhas mágoas a escrever coisas. Se não tivesse mágoas, nunca escreveria nada. Escrever a peça de finalistas foi a minha grande reivindicação à fama. A escola secundária do Michigan não tinha dinheiro para comprar os direitos de uma peça a sério, por isso eu disse que escrevia uma. Inseri uma cena sobre um tipo que tinha tido recentemente o seu coração completamente esmagado e partido para sempre. Depois fiz o papel do homem de coração partido e dei a mim próprio muitos bons conselhos. E depois fiz o papel do homem de coração partido e dei-me muitos bons conselhos. Eu também era o estudante diretor. Fiz tudo. A peça foi um grande sucesso. Tive de fazer um monte de vénias. As pessoas estavam sempre a bater palmas. E, de repente, todo o tipo de miúdas novas começaram a vir ter comigo nos corredores, a bater as pestanas, a bater com os seios nos meus braços nus – chefes de claque, actrizes, miúdas inteligentes com óculos. Depois, mesmo no meio de tudo issoa Sra. Miller chumbou-me e eu não me formei. Que miúda vai querer meter-se com um tipo que chumbou no liceu? Nenhuma miúda, é isso mesmo. Não admira que eu tivesse um chip no meu ombro. Ainda tenho um chip no meu ombro. Vou ter sempre um chip no meu ombro. Isto é que é lixar completamente a vida de uma pessoa para sempre. Oh, bem. A minha vida provavelmente teria sido lixada para sempre, de uma forma ou de outra.
No dia a seguir a não me ter licenciado, todos nós, eu, as minhas duas irmãs mais novas e a minha mãe, voámos para a Califórnia para estar com o meu pai. Ele tinha sido transferido para lá em abril, e a companhia de seguros para a qual trabalhava deu a todos um bilhete de avião grátis. Como é que eu podia deixar passar essa oportunidade? A imagem que eu tinha em mente da Califórnia era a de filas e filas de raparigas louras, brancas e bronzeadas, em biquínis, deitadas em praias de areia branca, à espera que tipos aleatórios lhes viessem esfregar Coppertone – e o meu pai tinha escrito uma carta a dizer-nos que a casa que tinha alugado ficava a três quarteirões do oceano! Onde havia um oceano tinha de haver uma praia, certo? Areia quente? Toalhas húmidas? Suor salgado e um Sno Cone de cereja derretido a escorrer pela garganta bronzeada de uma miúda surfista da Califórnia?
Errado. O que a carta do meu pai não fez dizia era que a casa que tinha alugado ficava num sítio chamado Pacifica, que, a seguir talvez à ilha de Baffin e à Terra do Fogo, é facilmente o terceiro sítio mais inóspito do planeta. De acordo com as pessoas que lá vivem, Pacifica fica “encurralada” durante todo o verão, e o que “encurralada” significa é que está tão frio, nevoeiro e vento que não se consegue ver o outro lado da rua, quanto mais o oceano, e mesmo que se conseguisse ver o oceano, o que não é o caso, não se conseguiria ver nenhuma praia porque, em primeiro lugar, não há nenhuma praia e, em segundo lugar, o que passa por uma praia não é mais do que rochas irregulares com enormes falésias que se elevam acima delas, de modo que, mesmo que pudesse ver o que passa por uma praia, não haveria raparigas nela, a não ser que uma pobre rapariga cega e paraplégica tivesse rolado acidentalmente a sua cadeira de rodas pela borda de uma das falésias, e mesmo assim ela não teria um fato de banho em biquíni, a não ser que também fosse tão irremediavelmente louca que você não quereria ter nada a ver com ela.
Eu não culpava o meu pai. Nenhum de nós o fez. Bem, não por isso. Acreditámos na sua palavra de que o tempo tinha estado bom no dia em que alugou a casa e, além disso, havia muitas outras coisas pelas quais o podíamos culpar – como aqueles três quarteirões do oceano de que se gabava. O que diz a carta não dizia era que cada quarteirão tinha 800 metros de comprimento e subia a direito pela encosta de uma montanha, de modo que, se alguma vez fosse suficientemente estúpido para arriscar a vida e a integridade física aventurando-se no vento cegante e no nevoeiro durante o tempo suficiente para tentar chegar à pequena zona comercial de má qualidade ao fundo da rua, teria de ser o Edmund Hillary para voltar a casa. O meu pai também estava a ter uma vida difícil. O seu trabalho não era o que se esperava. O que lhe parecia muito dinheiro no Michigan não era grande coisa na Califórnia. Não sei qual de nós ficou mais desiludido. Acho que foi um empate a cinco. Todos nós tínhamos ideias diferentes de como seriam as coisas na Califórnia e nenhuma delas se assemelhava ao que encontrámos em Pacifica.
A minha irmã Nicki, que tinha acabado de fazer quinze anos, não fazia outra coisa senão sentar-se no chão nu do seu quarto, vestindo todas as peças de roupa que tinha e ouvindo Buddy Holly cantar “Everyday” vezes sem conta, de tal forma que acabou por esgotar as ranhuras do disco. O meu pai tentou animá-la o melhor que pôde, primeiro tentando tocar “Petty Sue” na gaita de boca, depois comprando-lhe um telemóvel – o que acabou por ser tão desastroso como tudo o que tinha feito até então nesse ano. Se alguém pudesse ter tocado “Peggy Sue” na gaita-de-boca, teria sido o meu pai, mas o facto é que não é possível fazê-lo, e quanto a dar à Nicki o seu próprio telemóvel, sim, ela sempre tinha queria ter o seu próprio telemóvel, mas o filho da mãe nunca tocoue ela não conhecia ninguém que pudesse telefonar exceto no Michigan, que ninguém podia pagar, e que só a teria feito sentir mais saudades de casa do que já estava, mesmo que alguém pudesse ter-lhe pago.
A minha pobre mãe. Tudo o que fazia era tentar não chorar à frente da minha irmã de cinco anos, Tuney… e pobre Tuney! Ela pensava que íamos viver ao lado da Disneylândia. E a pobre Tuney! A única coisa remotamente parecida com a Disneylândia a que podíamos ir nos melhores dias era a um cinema com correntes de ar, muito caro e cheio de bolor, na zona comercial de má qualidade no sopé daquela maldita montanha.